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Márcia, uma amiga

Márcia, in loving memory

Eu não fosse mais morador da casa de apoio e, como não conseguia emprego, me voluntariava no CRT-A e na casa de apoio, tomando,aos meus cuidados, uma pessoa tristemente debilitada, o Waldir, que muito me ensinou em matéria de humildade, pois, embora eu ser homem, o penis dele precisava ser limpo e eu não ia ter a cara de pau de ir chamar uma enfermeira porque “em pinto eu não pego”; assim, eu ajudava pessoas e conseguia duas refeições por dia, uma no CRT-A e outra na casa de apoio, onde eu me recusava a morar naquele inferno. Isso, de certa forma pode parecer cinismo, ou mesmo hipocrisia, mas uma pessoa com AIDS, sem medicamentos, sem moradia, sem ter como conseguir se alimentar sempre considerará lícito este expediente, especialmente no cenário tenebroso da década de 90 aí, chegou o coquetel e com ele, aquilo que eu batizei como “o fim da primeira onda” (a terapia tríplice – o dito coquetel- acabara de ser implantada e ainda tinha muita gente em uma situação de saúde ruim) não foi difícil encontrar o que fazer.

Waldir, que morreu uns 65 dias depois vítima de algo que apareceu no atestado de óbito como tuberculose miliar e me foi esclarecido ser tuberculose disseminada por todo o corpo (um dia eu me animo e conto esta outra história). Morreu de pobreza o Waldir.

Mas não é a historia do Waldir que venho contar aqui, nesta página, é a da Márcia, que tive o prazer de conhecer enquanto acompanhava o waldir.

Depois de “entregar” o Waldir para que recebesse seus cuidados, que eram inúmeros e tomavam o dia todo, eu ficava livre para voltar a casa e só vir busca – lo no final da tarde (buscar aqui é colocar na cadeira de rodas e levar ate a ambulância), que era da casa de apoio, conhecida como papa tudo (…); mas preferia ficar no hospital, circulando pelos corredores, entrando em cada quarto, conversando com a pessoas e tendo a chance de entregar um copo com água a uma pessoa esquecida ou, algumas vezes, de alimentar o espirito de alguém com alguma esperança que eu mesmo não tinha e, como se pode ver, estava enganado. Acho que tanto dei esperança que acabei me convencendo.

Assim conheci a Lia, a Edna, o Pedro, a Angela (19 anos hemofílica), uns outros tantos (como aquela moça que teve toxo e com as complicações vive consciente e em posição fetal, dependente de todos para tudo o tempo todo); dentre estes outros tantos, Márcia, que me traz lágrimas, mesmo agora, apos tanto tempo.

Ela contraiu HIV do marido e foi colhida de surpresa por um diagnostico positivo de HIV em virtude de um sem numero de infecçoes oportunistas que atacaram e mataram seu marido em um periodo de 5 meses.

Ela tb não estava legal (eu me pergunto sempre como uma pessoa começa a ficar doente disso ou daquilo e ninguém se incomoda em fazer um exame mais aprofundado; me pergunto também como a pessoa não percebe que algo esta errado e deixa ir ate o fim. Deve ser o medo de saber.

Mas quando a conheci, estava melhor, já tinha voltado a andar, como uma patinha choca (eu sempre dizia isso para ela, que sorria…), e estava repleta de esperanças.

Mas tinha de estar lá todo dia e receber medicação endovenosoa; as picadas a torturavam, não havia mais veia que pudesse ser achada sem uma busca de 30, 50 minutos… e ela chorava so de ver a agulha (acho que isso piorava ainda mais a situação de suas veias) e eu sempre passava por ali as 8 e meia da manhã para tentar ajudar (abraçava ela e ficava falando besteiras no ouvido dela, passava cantadas cabeludas na menina de trinta e sete anos e ela ria como uma criança. Ao menos se distraia.

Isso durou uns 2 meses e ela teve alta.
Meses depois, eu ja fora da casa de apoio, entrei no CRTA para cuidar de mim mesmo e vim descendo os 8 andares pelas escadas, passando por cada um dos quartos e acabei reencontrando a Márcia, que dormitava, olhos abertos, bastante abatida. Tão abatida que me assustei. Ela também se assustou com a chegada repentina de uma pessoa e acordou.

Conversamos.

Não havia muito a dizer. Eu não acreditava em mais nada… e ela me disse assim:

Cláudio, estou cansada, não quero mais viver.

Mesmo sem esperança, ralhei com ela e disse que vivesse, que lutasse, que não cedesse agora que estava tao perto (do que?!), que seguisse adiante só mais um dia.

Fiquei com ela o quanto pude, mas tinha de ir embora, era uma sexta feira e a vida me chamava lá fora, me cobrando obrigações e compromissos…

Quando eu saia ela me abraçou e disse:

Obrigado por tudo Cláudio.

Chorei (como choro agora) e não tive palavra… Foi a última vez que a vi em vida, na Terra… faleceu em casa, junto aos seus, que se sentiram imensamente aliviados (…)

É uma história normal, comum a qualquer hospital deste mundo. Só um detalhe nesta história me faz conta – la:

Na segunda feira, logo de manhã, corri ao hospital, ainda não sabia do destino dela, e quis informações.

Foi então que a Dona Teresa, enfermeira chefe do hospital dia, uma senhora de 55 anos, cabelos grisalhos, olhos felizes (a imagem da vovó) me disse que ela havia falecido.

Ante o meu espanto e a minha tristeza ela disse:

Por que está assim? Você sabe, vocês, portadores de HIV e pessoas que vivem com AIDS, acabam sempre assim…

Estive, por um segundo, a ponto de joga – la do quarto andar, mas a entreguei a si mesma…

Nunca mais falei com ela. Me parece até hoje completamente absurdo que uma profissional de saúde possa ser tão insensível…

Márcia, querida, que eu sei que vela por mim de onde quer que você esteja: Muito obrigado pelas lições que me deu e pela abençada oportunidade de servir

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