HIV-AIDS: propagação do vírus ou partilha das responsabilidades?

A realidade de hoje, apesar de marcada por grande diversidade de ideias e ideais, ainda se vê às voltas com a tentativa de manutenção de pensamento único a justificar ideologias políticas e institucionais das instâncias dominantes da sociedade. Esta tentativa violenta, pois todo pensamento único desconsidera a diversidade, emerge legitimada pela racionalidade dominante ancorada na existência de valores a garantir a dita “ordem natural” do mundo. Tal fato atinge o campo das relações humanas a conjugar responsabilidades públicas e privadas, autonomia do Estado versus autonomia do sujeito e o embate entre as heteronomias em jogo.

As reportagens veiculadas pela mídia neste último dia 01 de dezembro, Dia Mundial de Luta contra o HIV-AIDS, demonstraram uma das facetas mais perversas da ditadura do pensamento único. Os telejornais, em sua grande maioria, atribuíram o crescente número de novas infecções pelo HIV entre a juventude brasileira pelo fato da nova geração Z não ter sido testemunha da perda e do sofrimento de personalidades públicas como Cazuza, Freddie Mercury e Renato Russo. Tal afirmação soou como mantra durante todo o dia 01/12/2014, pois para a mídia o desconhecimento do drama humano vivido no início da epidemia impulsiona o “descuido” e o “descaso” de uma coletividade crente de que o HIV-AIDS é “coisa do passado e afinal, a enfermidade não é tão grave assim”.

Ao se insistir nessa face da moeda, se atribui a responsabilidade pela propagação da epidemia à liberdade individual do sujeito e ao grupo ao qual pertence e se relaciona. Entretanto, há de se iluminar e problematizar a outra face multifacetária da moeda e destacar o alcance de tal responsabilidade a extrapolar a instância do indivíduo ou de determinada coletividade. Para além da responsabilidade individual e do grupo de pertença, cabe se perguntar como anda no Brasil a qualidade da educação sexual trabalhada e discutida pelas escolas públicas e privadas. Por falar em instituições, importa também se questionar como as Igrejas (des)educam os fiéis no tangente à vivência de gênero e exercício da sexualidade. Ou ainda: quais ações e campanhas efetivas, para além do dia 1º de dezembro e do carnaval, o Governo tem estimulado ao longo dos anos para enfrentar o aumento de infecções? O que a sociedade civil tem feito em prol do combate ao machismo e ao sexismo? Como nossas famílias confrontam, propagam ou reproduzem a homofobia e o machismo?

A homofobia conduz à marginalização da vivência da sexualidade e ainda restringe as possibilidades de exercício da afetividade nos espaços públicos, relegando o relacionamento homoafetivo à clandestinidade. O lugar da clandestinidade se apresenta mais propício a expor o sujeito a maiores vulnerabilidades, a incidir diretamente no quadro das novas infecções. Nesse cenário amplo, até hoje muitas mulheres cedem ao sexo sem a devida prevenção por dificuldade ou mesmo impossibilidade de negociar junto a seus parceiros o uso do preservativo. Permanece tabu se discutir prevenção dentro do casamento ou de relacionamentos estáveis, pois parte-se da premissa incontestável de que a fidelidade impera na vida do casal. Por mais que a vivência de relacionamentos abertos seja crescente, sobretudo entre a juventude, a sociedade como um todo permanece alheia à discussão da questão. Também tem se caminhado bem à margem do papel desempenhado pelas drogas recreativas na proliferação do vírus, ao restringir a liberdade e a autonomia do sujeito. Pouco tem se discutido sobre as novas formas e variações de exercício da sexualidade, a iniciação cada vez mais precoce da vida sexual, a naturalidade com que os jovens de hoje se permitem transitar por espaços fluídos pela multiplicidade de parceiros e experiências sexuais e afetivas.

Para finalizar, se propõe a pergunta: tal complexidade resumidamente exposta pode ser condensada na fórmula “nossos jovens não viram os seus ídolos morrerem vítimas da AIDS”? Para além da responsabilidade da juventude, por que não se lançar holofotes sobre a responsabilidade familiar, a institucional, a da sociedade civil, a do Departamento de DST AIDS e hepatites virais e a Governamental? Pelo visto, parece que a atitude comodista e descompromissada de transferir desproporcionalmente a responsabilidade de um mal evitável para a parte mais frágil da relação tem sido a escolha mais fácil e viável, ao invés de se trabalhar a passagem mais difícil, porém necessária e libertadora, para a tomada de consciência universal das responsabilidades e de enfrentamento à epidemia.

Leitura sugerida: Estado Laico?

Omar Lucas Sales

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