Por que não eu?

Eu estava encafifado com o que apresentaria aqui como “comemoração” ao dia 1º de Dezembro, dia mundial de combate à AIDS.

Pensei em postar dados estatísticos. Mas a mídia, que nunca lembra do tema, tem mais recursos que eu e certamente porá estes dados em suas pautas. Assim, fiquei meio que sem mote para escrever e resolvi escrever sobre mim (um triste e enfadonho assunto).

O que temos quando se trata de mim?

Temos dezenove anos de infecção por HIV e catorze anos mantendo este site, às minhas expensas e sem apoio de seu ninguém.

Só Deus sabe como pude manter este site por tanto tempo. Deus e os bancos que me ajudaram a pagar por isso sem que possam sequer sonhar em receber a vultuosa quantia que despendi para pagar por servidores dedicados, plug-ins e templates, sempre no mister de oferecer o melhor e o mais bonito (eu sou, sim, vaidoso).

Não vou dar ênfase ao valor (ou valores) investido aqui para não fazer corar as pessoas a quem pedi ajuda das mais variadas maneiras e que sempre me fizeram promessas e sempre deixaram DE CUMPRÍ-LAS.

Os motes para isso foram os mais variados e eu sempre os interpretei por preguiça mental ou indiferença.

Um de meus amigos, amigo desde que eu tinha dezoito anos note que estou próximo de completar cinquenta e um, mostrou-se visceralmente contra aminha postura de me assumir como soropositivo. E fez ainda mais questão de não se associar a isso (creio que é uma espécie de vergonha – preconceito velado).

Teve e tem amigos que poderiam, com um sopro, resolver em definitivo os problemas financeiros deste site e nunca souberam de mim. Houve até uma fase onde os donos de uma determinada empresa precisaram montar um site e eu não fui sequer chamado a me apresentar porque o único trabalho que eu tinha era este site, o soropositivo.org.

Há cerca de um mês eu vi que não dava mais para eu continuar pagando US$ 180,00 por mês para custear servidor, CPANEL, CloudLinux e outros acessórios que são necessários para manter um site com uma alta demanda de visitas (este site tem alcance planetário e esta traduzido para 58 idiomas). Assim, sacrificando qualidade, beleza, independência editorial e mais algumas coisas, migrei meu site para os domínios do wordpress e pagarei apenas US$ 99,00 por ano. Há que se informar que este amigo abrigava seu blog em meu sistema sem ônus algum porque quando ele criou o site estava sem emprego e eu achei que não custaria nada por seu site no meu servidor.

No ultimo dia 22 o meu servidor caiu por falta de pagamento e todos os sites (meus é claro) caíram.

E qual não é a minha surpresa quando digito o URL do site deste meu amigo e o vejo on line.

Ficou claro para mim que ele pode pagar e teria podido me ajudar a pagar o servidor do qual abdiquei com um pequeno esforço.

Mas… O eterno mas…

Hoje, finalmente, eu concluo que o HIV realmente dilacera laços e nem mesmo meio século de convivência conseguiu resistir à acida composição da vida com HIV.

No problem.

Quanto eu me descobri portador de HIV descobri que minha agenda com trezentos contatos de nada me valeu e se vivi alguma coisa parecida com amizade nos últimos anos, foi pura ilusão… (…) …

Neste âmbito, o que eu tenho mesmo é minha esposa, cujo nome não grafarei aqui.

Esta sim, leal companheira já há quase quinze anos!

Eu estive internado em hospitais nestes quinze anos, entre a vida e a morte poelo menos uma meia dúzia de vezes e ela sempre esteve lá. Meu “amigo” nem telefonar telefonou.

Alega que não gosta de hospitais.

Eu também não. MAS não o deixaria lá sem a minha presença amiga…

No problem once more.

Eu sei que colhemos o que plantamos e conheço bem meu cabedal de culpas e responsabilidades e entendo que as coisas foram assim porque eu tinha de passar por coisas assim.

Entretanto, Deus nos concede livre arbítrio até para minimizar o sofrimento das pessoas a quem amamos. Negligenciar este aspecto é escrever o próprio destino e isso, apesar de tudo, não me consola.

O que sei é que jamais procurarei esta pessoa outra vez e, assim, quebra-se o último elo da corrente que me prendia ao passado deprimente que vivi e do qual, às vezes, me envergonho.

Certo, eu tenho a atenuante de ter saído de casa muito jovem e, portanto, não recebi a instrução básica sobre relações humanas e, desta forma, em busca de algo que jamais lograria encontrar, conquistei, usei, feri e abandonei um número de mulheres tão grande, que ninguém acreditaria nele se eu o grafasse aqui.

Eu enchi um vale com lágrimas destas mulheres e, hoje, sou obrigado a beber estas lágrimas, quer eu queira, quer não.

Depois de catorze anos servindo nesta seara que é o soropositivo.org, creio que minorei minhas penas e, com o acréscimo de misericórdia que Deus sempre nos dá, eu posso dormir tranquilo, desde que eu tome rohypnol, stilnox e amitril.

Houve épocas que nada me fazia a dormir mais de três horas por dia e ninguém pode imaginar o que é preencher vinte e uma horas com coisas todos os dias.

Hoje, se eu não tivesse minha esposa e minhas filhas, que fiquei mais de vinte anos sem ver, eu daria cabo de minha vida sem pestanejar.

Não daria um tiro em minha cabeça, nem me jogaria da janela do oitavo andar… Mas tenho, aqui em casa, uma tal quantidade de psicotrópicos, incluindo metadona para controlar dores crônicas provocadas por uma demoníaca neuropatia periférica causado pela infecção por HIV, que bastaria eu tomar todos eles para não haver remissão possível.

E, com sorte, eu morreria dormindo.

Sei, porque sou espírita, o que me aguardaria do outro lado, mas isso não me deteria.

O que me detém são três pessoas que me amam declaradamente, mais uma, que as vezes é Lua, e já me pediu, mais de uma década atrás, que eu ficasse e eu fiquei!

Eu me lembro de uma passagem de um livro de Machado de Assis onde o personagem, numa narrativa bastante loquaz, caracterizou que ele, que dias antes pensara em ir ter com a morte, não ousou fita-la, quando ela veio ter consigo.

Eu sei que amo a vida e sei mais ainda que amo viver.

Mas eu queria vida em plenitude e aqui me assaltam as lágrimas!

Vida em plenitude significa, dentre outras coisas, ter um trabalho… E isso tem sido sistematicamente negado a mim por conta da sorologia. Um caso que dá ênfase a isso é aquele em que eu participei de um processo seletivo e fui aprovado para o setor mais importante dentro da empresa. Dei meus documentos, foto, papeis mas o número do meu NIT dá acesso ao saque que fiz do FGTS logo que me descobri soropositivo e lá consta, de forma indelével, a causa de meu saque, que foi AIDS. Fui eliminado do treinamento e nunca mais sonhei em ter um emprego.

Assim, para viver à sombra do rendimento de outra pessoa, de que me vale viver?

AS lágrimas me assaltam novamente aqui, onde eu sei que estou chovendo no molhado…

A verdade é que eu posso até colar o cazuza e dizer que meus heróis morreram de overdose.

É uma proposta interessante e não há um só dia em que eu não pense nisso.

Morrer de overdose.

Não faria falta a quase ninguém e acabaria com esta ladainha infernal que é viver sem paradeiro, sem renda, cercado de pessoas pusilânimes, desprezíveis, esta é a verdade; pessoas que não me vêem como uma pessoa e, sim, como “aquele chato da AIDS”.

Eu penso, às vezes, na morte.

Pessoas morrem todos os dias, por que não eu?

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