FONTES ANTERIORES AO HIV/AIDS parte 2
O que talvez seja mais importante enfatizar é até que ponto esta ligação com o estigma sexual tornou possível que a estigmatização e a discriminação ligadas ao HIV/AIDS se apropriassem dos mecanismos sociais pêlos quais a estigmatização e a discriminação sexual funcionavam anteriormente, e independentemente à AIDS. Como têm enfatizado pesquisadores tanto de perspectivas ligadas ao interacionismo simbólico (ver Gagnon & Simon, 1973; Plummer, 1975) quanto foucaultianas (ver Foucault, 1988; Weeks, 1981), tais formas de estigmatização — seja de homossexuais ou de qualquer outra categoria dos assim chamados desviantes sexuais — funcionaram tipicamente pela rotulação e classificação da diferença dentro dos campos de poder e exclusão existentes.
E esses mesmos princípios de estigmatização sexual têm sido rápida e eficientemente trazidos para trabalhar em relação à estigmatização, discriminação e negação ao HIV e à AIDS, constituindo um campo complexo no qual o estigma sexual e o estigma frente ao HIV e à AIDS são de difícil distinção (mesmo quando o estigma sexual parece algo distante ou até ausente).
Embora a estigmatização sexual venha sendo consistente e interculturalmente a forma mais freqüente e mais poderosa de estigmatização que trabalhe associada à estigmatização e à discriminação ligadas ao HIV e à AIDS, funcionou muito freqüentemente juntamente com uma série de outras formas de estigma que existiam antes e independentemente da epidemia de HIV/AIDS.
De fato, a estigmatização sexual tem sido fortemente associada ao estigma relacionado a gênero como outro elemento-chave associado ao HIV e à AIDS. Em muitas — senão na maior — partes das sociedades nas quais a infecção pelo HIV afetou as mulheres, tal fato passou a ser tipicamente associado a um comportamento sexual considerado inadequado em relação às normas de gênero locais. Em muitas sociedades que experimentaram epidemias significativas de HIV/AIDS relacionadas à transmissão heterossexual, por exemplo, a disseminação inicial da infecção esteve ligada às “trabalhadoras do comércio sexual”, com a prostituição sendo entendida como uma expressão de comportamento feminino fora dos padrões normais.
Com a emergência do HIV/AIDS, os trabalhadores sexuais foram tipicamente identificados como ‘Vetores de infecção” cuja simples existência criava riscos inaceitáveis não somente para os seus clientes como também para os seus parceiros sexuais normativos ou não comerciais e para a família de tais clientes.
Mesmo fora do contexto das relações sexuais comerciais, as noções de “promiscuidade” sexual se traduziram tipicamente em normas de gênero inaceitáveis, e as mulheres promíscuas vêm sendo consistentemente identificadas como as “responsáveis” pela elevação dos números da transmissão heterossexual.
Isto tem acontecido de forma totalmente independente da realidade epidemiológica, como no caso do Brasil, onde os dados da vigilância documentam altos índices de transmissão heterossexual entre as mulheres (formal ou informalmente) casadas, cujo único parceiro sexual era o marido, enquanto a cultura popular continuava a insistir que as mulheres “fáceis”, com múltiplos parceiros sexuais, eram a causa de origem da epidemia heterossexual (Parker & Galvão, 1996).
Resumindo, o estigma relacionado a comportamentos de gênero socialmente inaceitáveis apresenta uma intersecção com a estigmatização sexual e com a estigmatização ligada ao HIV e à AIDS de forma que se reforçam mutuamente, e é impossível entender totalmente ou responder ao estigma da AIDS sem levar em conta essas interações. E através dessas formas de estigmatização que a estigmatização ligada ao HIV e à AIDS se insere em campos mais amplos de poder e estruturas de desigualdade social e estrutural como parte de um processo mais complexo de exclusão social e opressão.
Embora as maneiras pelas quais funcionam em relação ao HIV e à AIDS pareçam algo menos claras, a estigmatização e a discriminação baseadas em raça ou etnia também têm sido fontes pré-existentes importantes de estigma que vêm interagindo de formas poderosas com o estigma associado à AIDS.
As convicções racistas de muitos dos primeiros discursos sobre a AIDS foram evidenciadas tanto em relação aos haitianos nos Estados Unidos quanto em declarações espantosas sobre a “sexualidade africana” típicas dos primeiros anos da epidemia. A estigmatização e a discriminação têm sido armas poderosas, interculturalmente utilizadas para policiar e manter as fronteiras étnicas, e não é de surpreender que essas funções tenham se reproduzido na história da epidemia de HIV/AIDS.
De fato, agora parece claro que a experiência de marginalização e opressão causada pelo racismo e discriminação étnica contra as populações minoritárias, tais como afro-americanos e latinos nos EUA, vem sendo intimamente ligada à sua vulnerabilidade diante da epidemia.
Com o “amadurecimento” da epidemia de HIV/AIDS nos últimos anos, fica igualmente claro que a pobreza — muitas vezes associada ou em conjunção com a opressão racial — se tornou uma das maiores fontes de vulnerabilidade e de estigma. Embora a estigmatização da pobreza e o papel do estigma no aprofundamento e na reprodução da exclusão econômica dos sem-teto, dos sem-terra, dos desempregados e de outros grupos marginalizados seja particularmente mal entendida, o fato de que tais formas de estigmatização preexistentes interseccionaram, auxiliaram e apoiaram a estigmatização e a discriminação ao HIV e à AIDS é claro, e bem documentado (ver Parker, Easton & Klein, 2000).
Juntos, esses eixos ou domínios pré-existentes de estigma, estigmatização e discriminação influenciaram as maneiras pelas quais evoluíram as respostas sociais à epidemia. Estes estão longe de serem tangenciais ao nosso entendimento dos efeitos negativos da estigmatização e discriminação à AIDS. Embora não sejam, com certeza, as únicas fontes de estigmatização que influenciaram, simultaneamente, a vulnerabilidade à infecção pelo HIV e as sanções sociais negativas exercidas contra aqueles percebidos sob o risco da infecção, sua interação com o estigma da doença do HIV/AIDS talvez tenha sido a principal característica definidora que tipificou a história da epidemia
Descubra mais sobre Blog Soropositivio Arquivo HIV
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.





